No segundo semestre de cada ano tem início a temporada de furacões no Atlântico Norte. Fenômenos da natureza, que segundo artigos da comunidade científica teve seus efeitos agravados pelo aquecimento global, atingem ricos e pobres com igual ira. Não é igual, porém, o peso qualitativo e quantitativo que a indústria jornalística brasileira dá para a passagem desses furacões pela região do caribe e Golfo do México.
As vidas têm igual valor, é o que prega a Declaração de Direitos do Homem. Os mortos e feridos da América Latina, aos olhos da indústria jornalística no entanto, valem menos que as vítimas norte-americanas.
Os furacões se formam na região do Caribe e ganham ou perdem força ao "caminhar" para o continente. Quando ainda são tempestades tropicais, recebem o nome ou de uma mulher ou de um homem numa ordem que segue as letras do alfabeto. Ao ganharem a classificação de furacões, recebem categorias que vão de 1 a 5. Em 2005, o furacão Katrina ganhou as manchetes do mundo todo, principalmente pelos estragos provocados em Nova Orleans. O tratamento da indústria jornalística para esses desastres naturais dá muito mais peso para os possíveis danos na população e na economia norte-americana do que para as vítimas e estragos nos países latino-americanos que estão no caminho. Basta acompanhar o noticiário, desde as primeiras notícias da formação de tempestades tropicais para encontrar um "roteiro" como esse:
a) a tempestade se forma e ameaça chegar aos EUA em alguns diasb) a tempestade ganha força e vira furacão com determinada categoria e coloca em alerta os EUAc) o furacao atinge país A ou B, geralmente no caribe, e pode chegar aos EUA.
Se o furacão permanecer com força, as manchetes continuam, se ele perder a intensidade, o noticiário se desmobiliza. Ficam para trás os esforços e conseqüências de países como Jamaica, Cuba, Haiti e República Dominicana.
Caso do Furacão Gustav
Para exemplificar, pode-se fazer a análise do furacão Gustav a partir do noticiário publicado no final de agosto e início de setembro. O estudo de caso será o do jornal Folha de S.Paulo.
Na segunda feira, dia 01 de setembro de 2008, a foto principal e a segunda manchete do jornal Folha de S.Paulo retratavam a saída da população de Nova Orleans, nos EUA, temerosa que os efeitos do Gustav fossem os mesmos do furacão Katrina, que arrasou a região em 2005 e, além das mortes e prejuízos, ajudou a desmoronar a imagem do presidente Bush.
Neste dia 01 de setembro, o furacão já tinha passado pelo Caribe, atingindo o Haiti, Jamaica e Cuba, a manchete no entanto foi: Furacão leva à fuga quase 2 milhões para o interior dos EUA.
Na chamada de capa, nenhuma referência às vítimas e estragos no Caribe. A citação só acontece já na página A10, no terceiro parágrafo: "A midia americana passou o dia transmitindo alertas do furacão, que deixou 95 mortos ao varrer o Caribe - a maioria no Haiti. Em Cuba, por onde passou ontem, levou 300 mil pessoas a deixarem suas casas e prejudicou a rede elétrica".
Nenhuma outra passagem faz referência à América Latina, todos os demais parágrafos, do lead às retrancas e subtítulos só citações para os planejamentos das autoridades, além da preocupação com a produção de petróleo. No infográfico, abaixo da borda o subtítulo: Furacão que já matou dezenas no Caribe ameaça sul dos EUA. Há uma retranca em que uma professora universitária brasileira, que reside nos EUA, fala das suas preocupações.
A outra retranca fala sobre o esvaziamento da Convenção Republicana, que seria realizada no mesmo dia para oficializar o candidato à presidência dos EUA. Um olho fala sobre como o candidato democrata capitaliza o desastre em seu favor, pois já organizava doações para as possíveis vítimas.
Nenhuma outra linha para os dramas das 95 famílias - confirmadas - no Caribe. Nenhuma foto para as 76 vítimas haitianas.
No dia seguinte, 2 de setembro, o furacão perde força, mas atinge os EUA. A foto principa é sobre o Gustav e manchete tem menos peso.
Novamente na página A10, a notícia vai para o pé da página. Não é mais assinada pelo correspondente nos EUA. É uma nota da redação em conjunto com as agências internacionais. A foto, da agência EFE, é da cidade de Houma, na Louisiana. No infográfico, as preocupações são: comparação com a trajetória do Katrina; impactos no preço do petróleo e novamente a citação dos mortos, agora com o número corrigido para 95.
Como o desastre foi menor do que o anunciado, matéria em pé de página par, subtítulo com três parágrafos relatando a passagem pelo Caribe. Fim de assunto.
Valores-notícia
A Teoria do Jornalismo explica, em parte, o tratamento desigual na cobertura dos furacões. Pela teoria do newsmaking, que explica as práticas jornalísticas no processo de seleção e construção das notícias, os jornalistas, para dar conta do rimo industrial das redações (horários apertados de fechamento, número de páginas que precisam ser preenchidas) adotam critérios de noticiabilidade para os fatos, atribuindo valores-notícia.
Quanto mais valores-notícia tiver um fato, maior a chance dele ser noticiado e de ganhar destaque naquela edição. Os furacões, em geral, tem os seguintes valores-notícia:
- amplitude: o tamanho dos estragos provocados não são significativos apenas para as regiões atingidas, mas ganha interesse internacional- negatividade e dramatização: mortos, feridos e desastres geram imagens e histórias de impacto- consonância: o Katrina se tornou um parâmetro de desastre e os danos dos novos furacões são comparados ao dele.- referência a nações de elite: os acontecimentos no países do centro do capital têm mais peso do que os de periferia - proximidade: infelizmente, para a América Latina, os EUA são considerados mais próximos do que os países do Caribe, mesmo que nossa história, nossa língua e nossa cultura sejam mais próximas dos caribenhos do que dos norte-americanos.
No caso do Gustav, como as convenções para a escolha dos candidatos democrata e republicano aconteceram em dias próximos à passagem do furacão, havia correspondentes destacados. De acordo com Nelson Traquina, esse é um critério contextual do valor-notícia de seleção: disponibilidade. Nos demais países pelos quais o furacão passou, não havia correspondentes brasileiros.
Essas explicações técnicas não tiram o peso ideológico dessa cobertura. Esse drama de solidão da América Latina, não ter correpondentes, não ser considerada "próxima", apenas reforça o quanto a região não é considerada significativa para a indústria jornalística, como outros artigos desse site já mostraram e como está provado na dissertação de mestrado "A Solidão da América Latina na grande imprensa brasileira".
(Alexandre Barbosa) http://www.latinoamericano.jor.br
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