segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

A indústria jornalística brasileira erra nas análises sobre Cuba


A indústria jornalística mundial, inclusive a brasileira, têm larga experiência em errar as análises sobre Cuba. Logo após a publicação da carta de despedida de Fidel Castro das funções de comandante em chefe e de presidente cubano, a grande imprensa se apressou em montar um obituário.
A leitura dos principais jornais, portais da Internet e dos programas televisivos era que Fidel Castro tinha morrido. Dentro dos critérios jornalísticos, realmente a carta é um fato que marca o fim oficial do governo na pessoa de Fidel Castro, porém não significa sua morte e muito menos o fim da Revolução Cubana.
Assim, os veículos de comunicação que se apressaram em fazer da saída oficial de Fidel, um anúncio da virada da ilha ao capitalismo caem no mesmo erro de análise de 1998. Quando o Papa João Paulo II foi visitar Cuba, os veículos de comunicação do mundo todo correram para a Havana e ocuparam andares inteiros dos principais hotéis. A idéia é que os discursos do Papa abalariam o sistema cubano e, tal qual correra na Polônia, o comunismo ruiria e as portas para o sistema capitalista ocidental estariam abertas.
Nada disso ocorreu. Os discursos do Papa nem foram tão incisivos e nem repercutiram tanto na população. Deste fato, pode-se tirar uma lição: qualquer análise apressada sobre Cuba pode ser inútil caso não se leve em conta a trajetória de luta desse povo. Desde o século XIX os cubanos lutam para serem independentes. Primeiro, da Espanha, depois dos EUA.
Os norte-americanos sempre consideraram a ilha uma parte do quintal. Fizeram até uma emenda na constituição cubana, que dava aos EUA poder de decisão sobre o cotidiano da vida na ilha. A vitória da Revolução de 1959 trouxe os primeiros conflitos com o gigante do norte, que não admita a nacionalização de algumas empresas. A burguesia cubana fechou seus escritórios a chave e foi para Miami, esperar que a onda passasse. Estão lá até hoje.
A guinada para o anti-imperialismo e para o marxismo em em 1961 foi a única solução encontrada por Fidel e seus companheiros para resistir às pressões norte-americanas. A URSS acenava com apoio, que depois se mostrou fraco na crise dos mísseis em 62. Cuba tinha o apoio econômico com a URSS que levou também a um intercâmbio cultural e esportivo. Porém, Cuba encontrou um socialismo caribenho. Tentou exportar o modelo de revolução armada com apoio nos camponeses. Em nenhum outro país, porém, as condições cubanas que permitiram a vitória da revolução, eram encontradas.
Depois de 61, os EUA empreenderam um enorme esforço para evitar outra revolução. Vieram os apoios militares e econômicos a ditaduras pela América Latina, o patrocínio dos contras na Nicarágua e as mais de 600 tentativas de assassinato de Fidel Castro. O assassinato de Che Guevara na Bolívia também fazia parte desse plano de evitar outra Cuba.
Sem conseguir o triunfo militar, os norte-americanos, desde as primeiras nacionalizações da ilha, impuseram um duro bloqueio econômico e comercial à Cuba. Não só os EUA, como os demais países que mantém acordos comerciais com eles, podem manter relações comerciais com Cuba. Há quase 50 anos que Cuba resiste. Primeiro, com o apoio da URSS e nos últimos anos, com os governos populares que se elegeram na América com os quais criou a ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas).
Estive em Cuba no período mais duro (entre o fim da URSS e o início do apoio da Venezuela) em 1998 (clique aqui para ver imagens de Cuba). Presenciei os dois mundos criados pelo turismo, que, com seus dólares, despertou nos jovens cubanos um desejo de consumo que os mais velhos aprenderam a superar. Mas vi também cenas de muita alegria.
Vi os pioneiros - estudantes cubanos - nos preparativos para as eleições. Sim, há eleições em Cuba. Os delegados do Partido Comunista são eleitos. E antes de qualquer crítica, basta se perguntar que espécie de democracia é essa que exige aos candidatos o gasto de milhões de dólares, aqui ou no EUA, para conseguir um cargo. Gastos esses que levam à corrupção, como, a cada ano, mostra o sistema brasileiro.
Vi também um cubano dizendo que chutou os americanos como se fosse uma bola de futebol. Essa frase explica bem porque a imprensa erra de dizer que a Revolução acabou com a saída de Fidel. Cuba não vai jogar fora a independência que tanto custou a conseguir.
Por isso, que de tudo que foi publicado na indústria jornalística brasileira, pouca coisa se salva. Nas rádio e TVs, uma avalanche de professores de história e relações internacionais. Alguns com análises apressadas. Desses, uma simples olhada no currículo lattes para perceber que apenas estudam algo relacionado com América Latina. O que mostra o quanto a indústria jornalística não está preparada para conseguir fontes sobre a região.
O jornalista Ricardo Boechat, no dia seguinte, foi mais coerente. "Atenção, Fidel não morreu, ele continua escrevendo, sua presença ainda será marcante", dizia. Entre os blogs, um chama a atenção. Flávio Gomes, especialista em automobilismo. "
Em tudo que realmente importa, Cuba é melhor que a maior parte do planeta. Mortalidade infantil, analfabetismo, miséria, falta de moradia e desemprego não fazem parte da rotina do cubano. Que pode não ter uma vida de luxos e regalias, pode não ter TV de LCD ou um Corolla na garagem, mas olhe para o seu próprio umbigo: quem aqui tem? Dispa-se de seus pequenos desejos de consumo e responda, com sinceridade: se você fosse sua empregada, morando nos confins da periferia, ganhando 500 reais por mês, com filhos na escola pública, assassinatos no boteco ao lado, camelando quatro horas por dia dentro de um ônibus, tendo de pegar fila no centro de saúde, não acharia um país como Cuba uma maravilha?
A imensa maioria dos brasileiros, imensa mesmo, vive muito pior que o pior dos cubanos. Você pode até viver melhor. Eu vivo. Mas a imensa maioria, imensa mesmo, vive muito pior. Aqui temos democracia, TV a cabo, loja da Maserati, calças Diesel, celular 3G. Podemos ir a Miami sem correr o risco de morrer afogado numa balsa feita em casa. Mas quantos de nós, brasileiros, vivemos integralmente essa liberdade? Quantos de nós podemos passar diante de uma vitrine, desejar algo e comprar? Quantos de nós podem sonhar com algo muito diferente da balsa que embala os sonhos dos dissidentes?
Nossa liberdade é bem relativa. É condicionada ao que se tem. E, para quem não tem nada, muito mais cruel do que as restrições ao ir e vir a que os cubanos são submetidos. Eles, pelo menos, sabem as regras do jogo, e as regras lá são feitas para a maioria. Sua realidade é a da ilha, e é nela que vivem. Com ambições e pretensões bem diferentes daquelas que nos alimentam, nós aqui do lado bonito e feérico do mundo.
E, afinal, quem somos nós para hierarquizar ambições? Quem é você para achar que seu desejo de ter uma Hilux é mais defensável do que o desejo de um cubano de ter uma geladeira melhor? Quem é você para afirmar que o american way of life adotado e defendido pelo mundo ocidental — esse estilo de vida que permite e aceita a degradação do ser humano miserável, que estimula a competição e que fecha os olhos para a violência diária contra os que não deram a sorte de ter o que você tem — é mais humano que a simple life de um povo como o cubano?
Na verdade, quem somos nós para falar de Cuba? Quem somos nós para troçar de Fidel? Quem somos nós para caçoar dos prédios decrépitos de Havana? Que país nossos pais nos deixaram, e que país estamos deixando para nossos filhos? Podemos nos orgulhar de alguma coisa? Podemos nos orgulhar de ter construído, com nossos meios e nossas mãos, uma nação onde as pessoas têm as mesmas chances, onde todos têm direito a uma escola, a um médico, a um trabalho? Cuba pode. Nós fracassamos, eles venceram."
Finalmente, uma fonte que, ao lado de Emir Sader, deveria ser a primeira a ser consultada. O editor do Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, autor da última biografia de Fidel Castro, portanto a mais atual e que dá conta das transformações do mundo. Em artigo na Agência Carta Maior, Ramonet diz que influência de Fidel Castro continuará com os textos publicados no Granma.
"Não pode haver um substituto para Fidel. Não apenas por suas qualidades como líder, mas porque as circunstâncias históricas nunca serão as mesmas. Fidel presenciou tudo desde a revolução cubana até a queda da União Soviética, e décadas de confronto com os Estados Unidos. O fato dele se afastar em vida irá ajudar a assegurar uma transição em paz. O povo cubano agora aceita que o país ainda pode ser conduzido no mesmo caminho, mas por um time diferente. Há um ano e meio, eles estão se acostumando com a idéia, enquanto Fidel permaneceu teoricamente como presidente. Como sempre, Fidel era o mentor.
A coisa mais surpreendente que eu achei sobre esse homem, em mais de cem horas que passamos juntos em conversas para a compilação de sua memória, foi o quanto ele era modesto, humano, discreto e respeitoso. Ele tem uma enorme moral e senso ético. Ele é um homem de princípios rigorosos e existência sóbria. Ele também é – eu descobri – apaixonado pelo meio ambiente.
Ele não é nem o homem que a mídia ocidental pinta nem o super-homem que a imprensa cubana às vezes apresenta. Ele é um homem normal, ainda que um homem incrivelmente batalhador. É um estrategista exemplar, que conduziu sua vida com permanente resistência. Ele contém uma curiosa mistura de idealismo e pragmatismo: ele sonha com uma sociedade perfeita, mas sabe que as condições materiais são muito difíceis de serem transformadas.
Ele deixa seu gabinete confiante que o sistema político de Cuba está estável. Sua preocupação atual não é mais sobre o socialismo no seu país do que a qualidade de vida ao redor do mundo, onde muitas crianças são iletradas, famintas e sofrendo de doenças que poderiam ser facilmente curáveis.
Ele também pensa que seu país deve ter boas relações com todas as nações, independente de seus regimes ou orientações políticas. Agora ele está passando a responsabilidade para um time que já foi testado e no qual tem confiança. Isso não irá trazer mudanças espetaculares. Muitos dos próprios cubanos – mesmo aqueles que criticam aspectos do regime – não desejam mudanças. Eles não querem perder as vantagens que foram conquistadas, a educação gratuita até a universidade, o acesso gratuito e universal à saúde, ou o fato de que há segurança e paz, num país onde a vida é calma."
Portanto, diferente do que apregoam a revista Veja e outras publicações, Fidel não teve um fim melancólico. Depois de tantas batalhas, ele passa o poder para outro time, como diz Ramonet. Não foram as armas, nem os espiões, nem o bloqueio econômico e nem a propaganda que tiraram Fidel do governo. Isso, os norte-americanos têm de engolir.



(Alexandre Barbosa) Idealizador do site latinoamericano.jor.br, jornalista formado pela UMESP (turma de 97), mestre em Ciências da Comunicação pela USP (2005) e especialista em jornalismo internacional pela PUC-SP (2000). Atualmente é professor universitário de cursos de comunicação social e consultor em comunicação institucional.

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